A museologia pede conhecimento e uma série de estratégias em favor do que é raro e quase sempre belo, uma profissão de alta responsabilidade porque envolve bens públicos ou privados relativos ao patrimônio cultural e histórico de instituições. A museóloga Cristina Maria Dalla Nora administra diariamente uma rotina intensa entre acervos, projetos e instituições, entre elas o Instituto Collaço Paulo – Centro de Arte e Educação, em Florianópolis (SC). A proximidade à Coleção Collaço Paulo começa, no entanto, antes mesmo da inauguração da instituição em 2022. Desde 2017, ela zela e atende as necessidades do acervo que, com a sede instalada no bairro Coqueiros, ganha outra dinâmica com as atividades desenvolvidas para visibilizar e garantir o acesso ao patrimônio artístico e cultural.
Formada como técnica em meio ambiente pelo Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC/2005), bacharel e licenciada em geografia pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), bacharel em museologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestre em museologia pela Universidade do Porto/Portugal, Dalla Nora é pós-graduada em gestão de pessoas pelo Senac/SP com cursos realizados na área de conservação e museologia, como o estágio supervisionado no Ateliê de Conservação-Restauração de Bens Culturais Móveis (Atecor), uma referência em Santa Catarina.
A bagagem profissional também traz a experiência de professora de ensino fundamental e cursinho pré-vestibular comunitário, atuação como educadora ambiental no Parque da Luz e estágio em museologia no Museu Histórico de Santa Catarina – Palácio Cruz e Sousa, ambos em Florianópolis, no núcleo central do Museu de Vila do Conde/Portugal e Museu Benaki (Atenas/Grécia). Começa a jornada na museologia no Ecomuseu do Ribeirão da Ilha e hoje, de modo simultâneo, atua como museóloga do Sesc/SC, no Museu de Florianópolis e no Instituto Collaço Paulo.
Nesta entrevista concedida à jornalista Néri Pedroso, Dalla Nora aborda os dilemas e desafios da profissão, comenta a importância da 18ª Primavera dos Museus, iniciativa do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram/MinC), reflete sobre a museologia no tempo contemporâneo, fala do trabalho na Coleção Collaço Paulo, segundo ela, “repleta de emoção e profundidade”. Conta também sobre o envolvimento com o Ecomuseu do Ribeirão da Ilha, conduzido pelo seu avô, Nereu do Vale Pereira. Sobre a atual realidade distópica, crê que “em tempos de incertezas e rápidas transformações, esses espaços [de arte] são fundamentais para a conservação da história por meio de objetos, documentos e obras de arte, permitindo que as gerações futuras compreendam suas origens e os processos históricos que moldaram a sociedade”.
Como vê as proposições nacionais deste ano encaminhadas pelo Ibram para a Primavera dos Museus que tem o tema “Museus: Acessibilidade e Inclusão”.
Cristina Maria Dalla Nora – O evento Primavera dos Museus, criado pelo Ibram em 2007, destaca a cada ano uma proposição relevante que merece atenção. Diversos temas já foram discutidos, como direitos humanos, redes sociais, mulheres e indígenas, entre outros. Este ano, o foco em acessibilidade e inclusão foi especialmente pertinente, considerando que muitos museus ainda precisam implementar ações efetivas nessa área. Ao escolher essa temática, o Ibram incentiva as instituições a refletirem e avaliarem as iniciativas que estão desenvolvendo sob a perspectiva da acessibilidade e inclusão.
Como avalia Florianópolis e seus museus na questão da acessibilidade e inclusão? Não parece que há um atraso generalizado na implantação de medidas verdadeiramente inclusivas e acessíveis? Como superar essa situação?
Dalla Nora – Os museus de Florianópolis ainda estão engatinhando na questão da acessibilidade. Embora algumas instituições tenham implementado ações pontuais, muito ainda precisa ser feito para alcançar uma acessibilidade universal e inclusão efetiva. É importante lembrar que a acessibilidade vai além da construção de rampas e instalação de elevadores; envolve também aspectos cognitivos e sensoriais. Muitas instituições ainda utilizam uma linguagem que não é acessível para grande parte da população, o que pode desencorajar pessoas de visitar esses espaços devido à dificuldade em compreender o conteúdo apresentado. Melhorar a clareza e a acessibilidade da comunicação é uma medida relativamente simples e de baixo custo que pode ser facilmente adotada.
Além disso, investir na capacitação das equipes que atendem o público é crucial. Profissionais bem treinados podem receber os visitantes de maneira acolhedora e eficiente, evitando barreiras que poderiam inibir a participação de muitas pessoas. Portanto, a formação contínua das equipes é uma ação indispensável para melhorar a experiência dos visitantes.
No entanto, um dos principais desafios para a implementação dessas ações é a falta de recursos financeiros. As instituições frequentemente enfrentam dificuldades para desenvolver projetos de inclusão e acessibilidade devido a limitações orçamentárias. Criar editais de fomento específicos para projetos de acessibilidade poderia viabilizar ações mais efetivas nessa área. Investir em acessibilidade e inclusão não só atende a uma necessidade social importante, mas também amplia o público das instituições culturais e fortalece sua relevância na sociedade.
Como vê o papel do museu em um mundo tão distópico?
Dalla Nora – Os museus desempenham um papel essencial na preservação da memória e na promoção da cultura. Em tempos de incertezas e rápidas transformações, esses espaços são fundamentais para a conservação da história por meio de objetos, documentos e obras de arte, permitindo que as gerações futuras compreendam suas origens e os processos históricos que moldaram a sociedade.
Portanto, os museus devem funcionar como locais de reflexão, promovendo diálogos e aprendizados que contribuam para a formação de cidadãos mais conscientes e engajados. Eles são mais do que depósitos de artefatos; são centros de educação e cultura que ajudam a moldar a compreensão e o envolvimento da comunidade com sua própria história e identidade.
O que é fundamental no exercício desta profissão?
Dalla Nora – Embora a profissão seja regulamentada pela Lei nº 7.287, de 18 de dezembro de 1984, ainda há uma escassez de profissionais e uma oferta limitada de vagas no campo da museologia. Por isso, é crucial que quem deseja seguir essa carreira tenha uma verdadeira paixão pela história e pela cultura. Além disso, é essencial buscar uma formação sólida, que inclua estágios e especializações nas subáreas de maior interesse.
Como a museologia é uma área multidisciplinar, demanda um conjunto diversificado de conhecimentos para realizar atividades de preservação, pesquisa, interpretação e divulgação do patrimônio. Na preservação, por exemplo, envolve-se a gestão de acervos com desenvolvimento de inventários, catalogação e conservação. Já na divulgação, as atividades incluem a organização de exposições e a criação de programas educativos.
Portanto, dada a amplitude e a diversidade das funções dentro da museologia, é fundamental que o profissional se especialize nas áreas de interesse para se destacar no mercado de trabalho. Essa especialização não só amplia as oportunidades de atuação, mas também contribui para o desenvolvimento e a valorização do patrimônio cultural.
Qual o principal dilema hoje no campo das reflexões da museologia contemporânea?
Dalla Nora – Acredito que o principal dilema enfrentado pela museologia contemporânea é encontrar novas formas de se conectar com o público e tornar-se espaços mais relevantes, inclusivos e transformadores. Vivemos em uma sociedade em constante mudança, marcada por avanços sociais, tecnológicos e culturais, e os museus precisam se adaptar a esse ambiente cada vez mais digital para manter sua relevância. No entanto, é essencial que os museus não percam sua essência como espaços físicos de encontro e interação. Devem buscar parcerias com a comunidade para fomentar debates, atuar como agentes de mudança social e oferecer experiências imersivas e personalizadas. Dessa forma, poderão equilibrar inovação com a preservação de sua função fundamental de promover conexões humanas significativas e enriquecedoras.
O início de sua jornada na museologia está no Ecomuseu do Ribeirão da Ilha. O que conta da experiência à luz do acervo do avô Nereu do Vale Pereira?
Dalla Nora – Meu avô montou um museu no Ribeirão da Ilha em 1971, primeiramente na Freguesia do Ribeirão e, depois, se transferiu para uma casa de sua propriedade desde a década de 1960, onde ele construiu um lugar que a gente usava nos fins de semana e nas férias. A minha lembrança mais antiga é de quando eu tinha mais ou menos oito anos e eu já apresentava o museu para os visitantes e já dizia que, quando crescesse, iria ser museóloga. Quando entrei na faculdade, não existia o curso em Florianópolis e acabei cursando geografia na Udesc, onde me formei como licenciada. Estava dando aulas para o 5º ano do ensino fundamental, quando resolvi levar meus alunos para visitar o Ecomuseu, momento em que percebi que as coisas estavam um pouco bagunçadas e que meu avô precisava de ajuda. Ao me colocar à disposição para trabalhar, ele aceitou. Só que na época eu não sabia nada sobre museu e comecei a fazer cursos na área, até que resolvi cursar o mestrado em museologia. Comecei a trabalhar no Ecomuseu em janeiro de 2011, saí para o mestrado entre setembro de 2012 e dezembro de 2013. Ao retornar, desenvolvi a dissertação de mestrado sobre o Ecomuseu e continuei o trabalho à frente do museu até setembro de 2018, quando fui chamada para assumir a vaga de museóloga do Sesc/SC. Mesmo depois de assumir o Museu de Florianópolis, segui dando um suporte ao meu avô, até que no início de 2023 ele encerrou temporariamente as atividades para o público. Durante o período no Ecomuseu do Ribeirão da Ilha, pus em prática muito dos aprendizados adquiridos com os cursos e o mestrado e que me desenvolveram para a função que agora estou exercendo, aprofundei meus conhecimentos sobre a história de Florianópolis, pratiquei o atendimento de públicos distintos e pude experimentar diferentes abordagens com as escolas. Com certeza, foi um período muito enriquecedor para a minha trajetória profissional.
Hoje você é museóloga do Instituto Collaço Paulo que, sem o caráter de um museu, reúne obras de arte e realiza exposições. Como é possível situar a questão?
Dalla Nora – Como uma das principais atividades do museólogo é a gestão e preservação de acervos, é relevante mencionar que o trabalho em instituições que, embora não sejam museus no sentido estrito, possuem acervos com características museológicas também é significativo. A museologia trata os acervos e objetos de maneira diferente dos acervos arquivísticos e bibliográficos, pois se concentra em levantar tanto as informações intrínsecas quanto extrínsecas dos itens. Museólogos podem atuar em qualquer instituição que se dedique à preservação de acervos tridimensionais e que tenha o objetivo de contar a história do local e promover a identidade cultural. Essas instituições podem incluir centros culturais, arquivos históricos, e até mesmo empresas e organizações com acervos significativos, desde que estejam comprometidas com a conservação e a valorização do patrimônio cultural.
Quando conhece e como começa a cuidar da Coleção Collaço Paulo?
Dalla Nora – Comecei a trabalhar com a coleção em 2017, mas conhecia uma parte dela há bastante tempo. Nos meus anos de colégio, estudei com o filho mais novo do casal Collaço Paulo e, sempre que visitava a casa do colega, ficava impressionada com a qualidade e diversidade das obras. Em 2016, o Dr. Marcelo [Collaço Paulo] estava emprestando uma obra de Eliseu Visconti (1866-1944) para uma exposição em São Paulo (SP). A galeria solicitante precisava de uma museóloga para elaborar um laudo de conservação, e ele me recomendou para o serviço. Esse foi meu primeiro contato profissional com a coleção. No ano seguinte, o Dr. Marcelo planejou uma grande exposição da sua coleção no Museu de Arte de Santa Catarina (Masc) e percebeu a necessidade de documentar o acervo. Apresentei uma proposta de trabalho para um período de quatro meses, mas, desde então, já se passaram sete anos e continuo gerenciando o acervo e o acondicionamento das obras. Espero continuar nesse percurso e enfrentar novos desafios que venham por aí.
Como se sente diante da responsabilidade nos cuidados da Coleção Collaço Paulo?
Dalla Nora – Sinto-me privilegiada e lisonjeada em poder trabalhar com um acervo com tamanha importância histórica e cultural. A responsabilidade de cuidar de um acervo com essa envergadura é, sem dúvida, uma tarefa complexa e desafiadora, mas também extremamente gratificante e enriquecedora por estar trabalhando para a preservação do patrimônio para as futuras gerações.
Você cuida de obras de grandes dimensões e raras. Qual é a complexidade gerencial do acervo, como opera a cada exposição? O que é mais difícil?
Dalla Nora – Gerenciar um acervo de obras de grandes dimensões é uma tarefa complexa e desafiadora, principalmente por se tratar de um acervo particular e que o local de salvaguarda não é propriamente dito como um espaço de memória e de uso exclusivo para acondicionamento e exposição do acervo. O maior desafio, nesse contexto, é garantir o adequado acondicionamento e a conservação preventiva das obras.
Cada exposição exige um planejamento logístico detalhado, que inclui a embalagem das obras ao final de uma exposição e sua transição para o local de salvaguarda. Simultaneamente, as obras para a nova exposição devem estar preparadas e organizadas para liberar o espaço necessário para o retorno das peças da exposição anterior. A parte mais difícil desse processo é a reorganização das obras que retornam, garantindo seu correto acondicionamento e preservação, o que demanda atenção cuidadosa e precisão.
O que mais aprecia na coleção? No seu ponto de vista, qual seria a sua identidade?
Dalla Nora – O que mais aprecio é a diversidade de obras e a história que reside por trás de cada aquisição. Essa riqueza de narrativas e experiências confere à coleção uma identidade única, repleta de emoções e profundidade.
Você está próxima à coleção desde 2017. A partir de 2022, quando o instituto é inaugurado, somam-se as exposições um conjunto de estratégias de aquisição, acesso e divulgação do acervo. Como vê a mudança, quais são as emoções de uma museóloga diante de quatro exposições já realizadas?
Dalla Nora – Com a inauguração do instituto em 2022, a coleção passou a ser percebida de forma muito diferente pelos colecionadores. A partir desse momento, surgiu uma nova preocupação com a apresentação e com a mensagem que se deseja transmitir. Essa mudança possibilita que a coleção seja conhecida e contextualizada por um novo público, fazendo com que ela se torne um organismo vivo, em constante transformação e diálogo com o mundo exterior. Agora é possível identificar lacunas e reconhecer as obras que realmente enriquecem a coleção.
Como museóloga, vivo uma gama de emoções, incluindo satisfação, aprendizado e responsabilidade. Sinto satisfação ao ver as obras sendo apreciadas pelo público, responsabilidade ao assegurar a conservação adequada das peças e aprendizado com ressignificações a cada nova exposição. No que diz respeito ao projeto de visibilidade, meu papel nos bastidores inclui fornecer suporte à curadoria com informações detalhadas sobre as obras e auxiliar na elaboração das fichas técnicas.
Como vê a coleção em relação à cidade?
Dalla Nora – Vejo a coleção como uma contribuição significativa para o cenário cultural de Florianópolis, oferecendo um espaço dedicado à arte e à educação com acesso gratuito para a população. Um dos grandes diferenciais do instituto é sua localização em uma área com poucas opções culturais, o que dá um dinamismo adicional à agenda cultural da cidade. Além disso, a qualidade das obras é notável, permitindo que a comunidade local tenha acesso a peças que anteriormente só podiam ser vistas nos grandes centros urbanos. Destaca-se também a inclusão de importantes obras de artistas de Santa Catarina, que agora podem ser apreciadas pela população a partir da inauguração do instituto.
Júlia Heidmann/Foto Divulgação
*Entrevista publicada em 26/9/2024, realizada por Néri Pedroso, jornalista, responsável pela produção de conteúdo e comunicação do Instituto Collaço Paulo.
