O historiador de arte Tiago Martins tem privilégios que poucos alcançam, como o de poder transitar nos bastidores do Museu do Louvre, do Museu de Belas Artes de Orléans, do Museu de Belas Artes de Amiens, Palácio de Versalhes e do Museu de Belas Artes de Bayonne, em Paris, onde vive há 17 anos. Junto a uma equipe, ajuda recentemente a restaurar oito pinturas da Catedral de Notre-Dame, após o incêndio em 2019. “Emocionante ver essas obras novamente expostas na catedral depois da reabertura”, diz ele.
Natural da Ilha de Santa Catarina – manezinho, portanto -, ele começa um currículo invejável com formação em direito e relações internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e história, na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Pássaro migratório, ajusta o roteiro profissional ao se formar em história da arte pela Universidade Paris IV – Sorbonne e como conservador-restaurador de pinturas na Universidade Paris 1 – Panthéon-Sorbonne, especializado na conservação e restauração estrutural de pinturas sobre tela.
Depois de obter o título de mestre em conservação e restauração de bens culturais, passa a trabalhar com coleções públicas francesas, entre outras a do Museu do Louvre e do Museu de Belas Artes de Orléans, atuando de forma independente ou em colaboração com outros profissionais em pinturas de pequeno, médio e grande formato. Ele também realiza trabalhos para monumentos históricos, como a Notre-Dame de Paris. Com frequência, faz intervenções no Centro de Pesquisa e Restauração dos Museus da França (C2RMF).
Entre 2016 e 2024, Tiago integra a equipe de restauradores especializados em suportes de tela referenciados pelo Castelo de Versalhes. Entre 2020 e 2024, também atua como restaurador de suportes na Conservação de Obras de Arte Religiosas e Civis (Coarc) da Prefeitura de Paris, contribui para a preservação do patrimônio da cidade, incluindo intervenções em igrejas como Saint-Germain-des-Prés, Saint-Sulpice, Saint-Eustache e Saint-Méri.
Entre suas competências, além de efetuar intervenções em obras raras e monumentais, é conferencista, participa de congressos, faz diagnósticos e articulações em nível internacional. Atento à família, costuma vir a Florianópolis com certa frequência, quando acompanha o circuito cultural da própria cidade que considera um porto seguro, lugar onde está a sua casa.
Em Florianópolis, mantém contato com o Instituto Collaço Paulo – Centro de Arte e Educação. “Quando conheci Tiago Martins, restaurador de obras de arte em Paris, levado pela artista Juliana Hoffmann ao instituto, começa neste momento uma amizade. A cada conversa e detalhes do seu trabalho atual, amplia-se o desejo infinito de poder ter a oportunidade de estar tão perto de obras tão maravilhosas, tão magníficas quanto as da catedral de Notre-Dame. Penso que é como poder tocar o céu. Consegui ver muitas delas através das suas mãos. Seus dedos com maestria trazem vida a cores apagadas e tela com perdas de matéria, eles ressuscitam a arte para novas gerações. O quão belo é o trabalho de um restaurador”, diz Marcelo Collaço Paulo, diretor-presidente do Instituto Collaço Paulo.
Sobre as percepções desses encontros, Martins entende o instituto como um presente para Florianópolis e sente-se satisfeito por ter expressado pessoalmente a sua gratidão “pela criação de um espaço onde a população pode visitar gratuitamente uma coleção de qualidade, em uma capital onde, infelizmente, as opções culturais ainda são escassas”.
Em entrevista exclusiva para a jornalista Néri Pedroso para o programa Instituto Entrevista, sem deslumbramento com as próprias conquistas, Martins alerta que “o caminho não é simples se o objetivo é trabalhar para as coleções dos museus franceses”. Redutor, atribui à sorte o fato de frequentar locais sem acesso do grande público, como reservas técnicas ou ateliês de conservação-restauração de museus ou palácios. Para ele, ver “obras raras, poder tocá-las e estabelecer um contato direto com sua materialidade é uma sensação indescritível”.
Como sente-se Tiago Martins, um manezinho ou um parisiense? Ou é um cidadão do mundo? Do ponto de vista pessoal, como essa questão se situa no íntimo?
Tiago Martins – É uma questão interessante. Sempre me pergunto se, depois de 17 anos morando na França, me sinto verdadeiramente francês ou parisiense. A verdade é que, quanto mais o tempo passa, mais me sinto florianopolitano, manezinho da Ilha! É na Ilha e na região metropolitana de Florianópolis que tenho toda a minha família e, quando vou de férias, continuo dizendo: “Vou para casa”! Pessoalmente, me reconforta ter essa referência da cidade, onde nasci e cresci como um porto seguro, onde é sempre agradável voltar.
Por que e quando decide ir morar em Paris?
Martins – Eu decidi vir para Paris em 2007, após terminar um mestrado em direito e relações internacionais na UFSC. No último ano do mestrado, em 2006, comecei a cursar história na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), já com o desejo de orientar minha vida profissional pelos caminhos da história da arte. Com essa bagagem, e como já estudava francês há bastante tempo, decidi solicitar uma inscrição na Sorbonne – Paris IV para iniciar uma graduação específica em história da arte. Meu pedido foi aceito e, em setembro de 2007, mudei para Paris para começar o primeiro ano da graduação.
Como e quando escolhe a profissão de conservador-restaurador? É um caminho difícil?
Martins – Durante a graduação em história da arte, que dura três anos e é bastante densa, os professores explicam repetidamente que um diploma de historiador da arte não é suficiente: é necessário complementar a graduação com outros estudos que permitam exercer uma profissão concreta, como diretor de museus, guia turístico ou conservador-restaurador do patrimônio, por exemplo. Eu tinha vontade de fazer um trabalho manual. Desde pequeno, havia estudado na Escolinha de Arte que funcionava embaixo da Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina e sempre fiz cursos de desenho e pintura. Assim, decidi orientar-me para a conservação-restauração, mais especificamente, para a conservação-restauração de pinturas. O caminho não é simples se o objetivo é trabalhar para as coleções dos museus franceses: em Paris, apenas duas escolas públicas oferecem o curso de conservação-restauração — o Instituto Nacional do Patrimônio e a Sorbonne – Paris 1 — e, a cada ano, selecionam apenas quatro estudantes por especialidade: pintura, escultura, artes gráficas, móveis, etc. Os candidatos a essas vagas, raramente aprovados no primeiro concurso, normalmente já são graduados em história da arte e devem passar por provas de cultura geral, desenho e até mesmo pela cópia de um quadro. Os poucos selecionados cursam, então, quatro ou cinco anos de estudos, dependendo da escola, até obterem o nível de mestrado em conservação-restauração. Só assim serão habilitados a restaurar obras pertencentes às coleções dos museus públicos franceses.
O que mais aprecia no seu trabalho?
Martins – O que mais aprecio é devolver a vida a pinturas que poderão ser apreciadas pelas futuras gerações. Meu trabalho é ínfimo se comparado à quantidade de bens patrimoniais que necessitam de intervenção, mas fico feliz por poder fazer a minha parte. Minha recompensa é que, para a salvaguarda desses tesouros, tenho a sorte de frequentar lugares que o público não pode visitar, como reservas técnicas ou ateliês de conservação-restauração escondidos em muitos museus ou palácios. Além disso, ter acesso a obras raras, poder tocá-las e estabelecer um contato direto com sua materialidade é uma sensação indescritível.
Qual é a envergadura da responsabilidade de ter nas mãos a preservação e salvaguarda do patrimônio constituído de bens culturais raríssimos?
Martins – É verdade que a responsabilidade é grande, mas os longos anos de estudo e a realização de inúmeros estágios nos preparam para essa realidade. Também é importante ressaltar que a seriedade com a qual restauramos uma obra rara é a mesma com a qual restauramos uma obra pertencente a um cliente privado. A última, muitas vezes, não tem um valor patrimonial ou comercial significativo; no entanto, apresenta um valor sentimental e afetivo que merece e deve ser respeitado.
Essa atuação, além de muito estudo e pesquisa, exige paciência na execução, assim como concentração e, imagino, silêncio. Quais devem ser os grandes atributos deste profissional?
Martins – A paciência é a grande aliada do conservador-restaurador. Toda a ciência e toda a experiência não são suficientes se o profissional não souber respeitar os tempos de intervenção: às vezes, uma determinada etapa não pode ser realizada porque a umidade relativa no ateliê está muito alta ou, ao contrário, muito baixa, e é necessário esperar que ela se estabilize. Outras vezes, é preciso aguardar que um material seque completamente antes de aplicar outra camada. Essa consciência do “tempo necessário” deve ser constante, e a “falta de paciência” é inadmissível. Hoje, com a realização de exposições que se sucedem ao redor do mundo e com os prazos extremamente curtos impostos aos conservadores-restauradores, pode ser difícil trabalhar com serenidade. Nossa atividade, que jamais deveria ser realizada sob pressão, acaba sendo afetada pelo ritmo frenético no qual a sociedade avança.
O que é inaceitável neste universo?
Martins – A soberba ou a autoconfiança exagerada. Em primeiro lugar, o conservador-restaurador não é o autor da obra. Ele age para que a obra possa continuar a ser admirada e, se seu trabalho for bem feito, não deve ser perceptível pelo público. Em segundo lugar, as obras de arte são únicas e complexas e, diante delas, o conservador-restaurador deve se apresentar com humildade. Isso significa que ele necessitará, permanentemente, da ajuda de outro profissional para o exercício de sua atividade — seja ele um cientista, um conservador-restaurador de outra especialidade ou até mesmo um historiador da arte especializado.
O que destacaria de relacionamentos institucionais e projetos realizados? Qual a experiência mais marcante de sua trajetória?
Martins – Quanto aos relacionamentos institucionais, gosto muito de trabalhar em pequenas estruturas, como museus de cidades menores, pois o diálogo com os responsáveis pelas obras é muito mais direto do que em grandes museus. Nestes dez anos de profissão, tive duas experiências bastante marcantes: a primeira foi logo depois de me formar, quando substituí um colega no processo de higienização dos quadros de Monet (1840-1926) pertencentes ao Museu Marmottan-Monet. Enquanto trabalhava, percebi que havia visto essas obras em 1997, no Museu de Arte de São Paulo (Masp), quando estive em São Paulo para buscar o visto para minha primeira viagem à França. Foi uma surpresa trabalhar com quadros que eu havia visto pela primeira vez na adolescência! A segunda experiência foi a participação na restauração de oito quadros da Catedral de Notre-Dame, os quais tive a oportunidade de restaurar após o trágico incêndio de 2019. Emocionante ver essas obras novamente expostas na catedral depois da reabertura.
A profissão demanda conhecimento de química, biologia, história da arte, materialidade de objetos com significação histórica e artística, processos de deterioração, enfim, uma diversidade de temas sem fim. Num mundo com tantos avanços tecnológicos em alta velocidade como ajusta-se à demanda de amplo saber?
Martins – É uma questão de extrema importância, pois, mesmo depois de formado, o conservador-restaurador deve continuar seus estudos, participando de cursos de aperfeiçoamento e atualização. Trata-se de um investimento necessário, mas de alto custo para os profissionais independentes. Algumas fundações, como o Getty, oferecem bolsas de estudo e organizam cursos gratuitos sobre temas bastante específicos. Por isso, é fundamental estarmos sempre atentos às publicações divulgadas nos sites dessas instituições. Em 2023, fui selecionado, com outros 11 conservadores-restauradores, para participar do Conserving Canvas Project, uma formação de ponta na minha especialidade, ou seja, o tratamento estrutural de pinturas sobre tela, como o reparo de rasgos e outros danos. Essas formações permitem nos atualizar sobre os métodos mais inovadores e também compartilhar experiências com profissionais de diferentes países.
Num mundo de tanto descarte e tão em alta velocidade em relação ao futuro das profissões, como vê a atuação de um conservador-restaurador?
Martins – Eu me orgulho de realizar um trabalho manual que valoriza gestos ancestrais e materiais tradicionais. Nesse sentido, quando me instalo para trabalhar, é como se entrasse em uma cápsula do tempo, onde estou em simbiose com a obra a ser restaurada. A tecnologia e o desenvolvimento de novos equipamentos e produtos ajudam na atuação do conservador-restaurador, mas os métodos tradicionais, sejam eles de fabricação ou de restauração, não podem ser completamente esquecidos, pois são a base da profissão. Sem compreendê-los, não podemos reparar danos em uma obra que tem 200 ou 300 anos. Mesmo que eu decida, por exemplo, utilizar materiais 100% sintéticos nas minhas intervenções, preciso ter conhecimento sobre os utilizados pelo pintor, para escolher o produto adequado, garantindo que meu trabalho seja satisfatório. Além disso, todas as minhas intervenções devem ser reversíveis. Isso significa que, dentro de cem anos, se a obra precisar ser restaurada novamente, todos os materiais que eu introduzi devem ser removidos sem dificuldade pelo profissional que me sucederá no futuro. Um robô ou Inteligência Artificial nunca poderá substituir a genialidade dos pintores do passado, nem a sensibilidade e o olhar de um conservador-restaurador.
Como vê a formação e atuação de um conservador-restaurador no Brasil em paralelo ao da Europa?
Martins – Quando me mudei para Paris, em 2007, os cursos de graduação em conservação-restauração de bens culturais móveis ainda não existiam no Brasil. A primeira graduação no Brasil teve início em 2008, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e acredito que esse tenha sido um momento importante para a profissionalização do conservador-restaurador no país. Não estou dizendo que os profissionais que não têm uma graduação em conservação-restauração sejam desqualificados, atenção! Antes da criação dessa graduação, diversos profissionais brasileiros se formaram pelo curso de especialização em conservação e restauração de bens culturais móveis, também na UFMG. O que quero destacar é que os cursos universitários públicos, atualmente oferecidos em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, no Pará e no Rio Grande do Sul, estabelecem uma base comum para todos os estudantes e incentivam a pesquisa nessa área tão específica. Esse fator é essencial para que a sociedade reconheça a profissão de conservador-restaurador como tal. Você pode ter frequentado uma escola de artes e ser um ótimo pintor, mas isso não significa que saiba restaurar um quadro. São profissões diferentes, com exigências distintas. Por isso, no Brasil, as instituições devem se preocupar em contratar profissionais diplomados ou que possam comprovar qualificação e experiência reais na área. Na França, salvo raras exceções, os museus públicos exigem que o conservador-restaurador tenha um diploma emitido por uma dessas escolas públicas: o Instituto Nacional do Patrimônio e a Sorbonne, ambos em Paris, a Universidade de Tours (exclusivamente para esculturas) e a Escola de Avignon.
Quais são os projetos para o Brasil?
Martins – Tenho muita vontade de participar de um projeto de conservação-restauração no Brasil, de preferência em Florianópolis. Durante minha última visita, em setembro de 2004, estive em contato com a administração do Museu Histórico de Santa Catarina – Palácio Cruz e Sousa. Muitos quadros do museu necessitam de intervenção para poderem ser expostos, e eu gostaria de desenvolver esse projeto junto a uma colega francesa, especialista no tratamento da camada pictórica, com a qual trabalhei no Uzbequistão, restaurando e capacitando a equipe de restauradores locais. Seria muito gratificante compartilhar experiências e trabalhar com os conservadores-restauradores do Ateliê de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (Atecor), que funciona no Centro Integrado de Cultura (CIC), e que é pouco conhecido pelo público. Espero que o Governo do Estado, a Fundação Catarinense de Cultura (FCC) ou a iniciativa privada possam apoiar o projeto e que ele saia do papel o quanto antes!
Em sua última vinda ao Brasil, conheceu o Instituto Collaço Paulo e o colecionador com quem estabeleceu um diálogo entre o Brasil e a França, uma conversa sobre acervos e obras artísticas. Como foi a sua experiência no instituto?
Martins – O instituto é um presente para Florianópolis. Tive a oportunidade de encontrar-me duas vezes com o Dr. Marcelo e pude expressar minha gratidão pela criação de um espaço onde a população pode visitar gratuitamente uma coleção de qualidade, em uma capital onde, infelizmente, as opções culturais ainda são escassas. Francófilo, é um prazer ver algumas obras de arte francesas na minha cidade natal! Muitas obras do instituto interessariam a mais de um museu francês. Minha atividade como conservador-restaurador não me permite estar constantemente em bibliotecas ou em contato com curadores especializados, mas, sempre que for possível, criarei esse vínculo entre o colecionador brasileiro e as coleções francesas.
O que exatamente destacaria no que conheceu? Que impressões leva?
Martins – Além da qualidade da coleção, destaco a vontade do colecionador em produzir conhecimento. Sem pesquisa, uma coleção não tem sentido. Por isso, o instituto é importante para Florianópolis. Sente-se, desde a primeira visita, que as exposições são pensadas em conjunto pelo colecionador, rodeado de profissionais altamente competentes: historiadores da arte, museólogos, curadores e mediadores culturais. A experiência do visitante é completa, e ele sente vontade de voltar. Eu, por exemplo, visitei duas vezes a exposição “Mais Humano”, duas vezes a exposição “Etérea”, e me entristece não poder ir a Florianópolis para prestigiar “Máscara Humana”, pois Rodrigo de Haro é um dos pintores de Santa Catarina de minha predileção.
*Entrevista publicada em 24/03/2025, realizada por Néri Pedroso, jornalista, responsável pela produção de conteúdo e comunicação do Instituto Collaço Paulo.
*Tiago Martins na inauguração da exposição no Mobier National, com os quadros restaurados da catedral Notre-Dame / Foto Divulgação