A convite do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV) da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), o professor doutor Emerson Dionisio Gomes de Oliveira em recente visita a Florianópolis ministrou uma aula magna e o curso “História da Arte: Coleções e Museus”, composto de três aulas, uma das quais realizada no Instituto Collaço Paulo – Centro de Arte e Educação, em Florianópolis (SC). Na ocasião, ele viu a mostra “Sintomas do Agora” e, no Ateliê de Imersão, discorreu sobre a “História da Arte Diante das Histórias das Coleções”.
Historiador da arte, mestre em história da arte e da cultura pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde dirigiu o Museu de Arte Contemporânea. Doutor em história cultural, ele atua no PPGAV da Universidade de Brasília (UnB). Autor do livro “Museus de Fora” (Zouk, 2010) e organizador, em parceria, das publicações “Instituições da Arte” (Zouk, 2012), “Histórias da Arte em Exposições” (RioBooks, 2015), “Histórias da Arte em Coleções” (RioBooks, 2016), “Histórias da Arte em Museus” (RioBooks, 2020), “Musealização da Arte” (Appris, 2023), e, o mais recente, “Políticas da Diferença” (Unicamp, 2024). Entre inúmeras atividades e viagens, já editou as revistas “Em Tempo de Histórias” (2007/08); “Museologia e Interdisciplinaridade” (2012/16) e “VIS” (2015/16), hoje faz a edição da revista “Modos. História da Arte” e está na coliderança do Grupo de Pesquisa Musealização da Arte: Poéticas em Narrativas.
As questões para o Instituto Entrevista foram formuladas por Joana Amarante, coordenadora do Núcleo Educativo, e Néri Pedroso, jornalista, responsável pela produção de conteúdo e comunicação na instituição, à luz dos conteúdos acompanhados pelas duas na aula magna e no curso. Aulas-conversas reveladoras de uma amplitude informativa sobre coleções, museus, obras, artistas, colecionadores, leis, curadorias, o mercado, as bienais e os salões, a crítica, o jornalismo, os pesquisadores, a história, os arquivos e a memória, fatos e curiosidades sem fim narrados sem afetação.
Nos três dias de curso demonstra que as pesquisas sobre arte o levam pelo mundo. Sua verve discursiva transdisciplinar abarca uma geografia globalizada, trânsito e análises que fogem de centralidades e eixos redutores, para tentar conectar e explicar a complexidade denominada como sistema de arte, o que, segundo ele, “não pode ser compreendido como exterior ao modo como interpretamos uma obra”.
Ele também menciona de modo recorrente o papel de uma equipe no trabalho do pesquisador e no cenário das artes visuais, cujos resultados dependem de modos colaborativos. “A colaboração é um dispositivo fundamental para instituições que lidam com as sensibilidades, dos artistas ao público. Trata-se de tecnologia social”, diz ele, que situa o valor das especificidades de cada atuação, da horizontalidade e, por vezes, dos afetos e amizades. Compreender que não se pode fazer sozinho, segundo ele, é entender a própria contemporaneidade. As parcerias são para a universidade e as instituições culturais uma questão de sobrevivência.
Crucial é que as “obras não existem no vácuo do mundo”, alerta o Emerson Dionisio já na primeira resposta da entrevista, lembrando que, embora muitos sujeitos do sistema tentam tomar o protagonismo nas inúmeras negociações que garantem sua existência e apreciação, quem sobressai são os trabalhos artísticos. Eles comandam, têm poder, mudam narrativas históricas.
Em cenários em que a leitura das imagens quase sempre é mais valorizada, com pouca clareza sobre o sistema de arte, às vezes inclusive dentro da academia, como situa o seu trabalho que se debruça sobre as instituições, as coleções, o mercado, a realidade concreta?
Emerson Dionisio G. de Oliveira – O olhar sobre a obra de arte é primordial. A interpretação sobre as intenções do artista; aquilo que as obras podem nos dizer em momentos diferentes, a aproximação sobre os elementos poéticos e materiais é crucial para que possamos começar a compreender o trabalho artístico. Contudo, não é suficiente. Obras não existem no vácuo do mundo. Não estão isentas das práticas que ditam como e onde podem ser vistas, preservadas e analisadas. Toda obra de arte tem sua biografia e isso significa compreender que obras se relacionam com críticos, colecionadores, profissionais de instituições museológicas e de mercado, educadores, curadores, pesquisadores e públicos de toda ordem. Essa realidade sempre foi constituinte das obras. Historiadores da arte profissionais não negligenciam esta biografia. Somos capazes hoje de compreender tanto os elementos próprios e constituintes de cada trabalho, mas devemos perceber como uma obra se relaciona com outras obras dentro das coleções, dos programas curatoriais e dos regimes de visibilidade. Chamo de “regime” os resultados de negociações que permitem a obra existir e ser apreciada. As decisões tomadas por colecionadores, gestores, curadores, entre outros profissionais que se relacionam com as obras cotidianamente, nem sempre são conscientes, mas quase todas implicam no modo como o trabalho do artista será apreciado. Uma crítica negativa pode reduzir o interesse sobre um artista e sua produção. A predileção de um colecionador sobre um gênero de pintura pode definir quais obras um curador terá ou não à disposição para fazer seu trabalho. Uma posição ruim numa expografia pode induzir o público a negligenciar uma obra. Uma boa fotografia de uma obra pode colaborar para sua presença na capa de um catálogo ou uma publicação especializada, conferindo-lhe destaque contínuo em relação a outras obras. Uma família de colecionadores disposta a vender uma escultura pode estimular o mercado a investir na carreira de um artista um tanto esquecido. Enfim, o sistema da arte não pode ser compreendido como exterior ao modo como interpretamos uma obra. Contudo, é preciso atenção, os problemas ocorrem quando um desses sujeitos do sistema tenta tomar o protagonismo da obra. Na ecologia das relações que sustentam o “mundo da arte”, historicamente, nem mesmo o artista conseguiu deslocar a obra.
A defesa das instituições, os museus brasileiros em dificuldades. O museu perde importância no cenário contemporâneo? Entre o público e o privado, há tantos novos espaços alternativos, nada oficiais, agendas em alta velocidade e transdisciplinares, baixa compreensão sobre o efetivo papel da memória, como podemos situar o tempo presente nesta perspectiva?
Emerson Dionisio – Estamos vivendo um tempo de marcante diversidade de interesses nas artes visuais e sua relação com tantos outros campos da cultura. Essa diversidade toda não cabe no museu e, de fato, nunca coube. Basta olharmos o papel de ateliês, associações, grupos mais ou menos formais na nossa história da arte para verificar que muita da produção viveu e vive à margem de grandes acervos, das grandes instituições. Hoje tenho preferido utilizar “instituições museológicas” para indicar uma pluralidade de espaços que fazem circular arte, produzindo conhecimento para além dos processos consolidados. Espaços que investem em práticas coletivas e estão atentos à experimentação. São instituições distintas que, frequentemente, não se enxergam como “instituições” estrito sensu. Penso que a diversidade do sistema da arte fortalece os museus e não o contrário. Quando o museu opta por tentar centralizar a memória de uma cena artística, geralmente, está fadado ao fracasso. Há muito trabalho a ser feito: investir na memória e na produção de sentido em relação a seu acervo; prestigiar artistas fundantes e consagrados; consolidar novas práticas de mediação e educação, enfim, muito trabalho que pode e deve ser feito por instituições distintas, que conseguem dialogar com diferentes setores da cultura e das artes. Muitos desses espaços gerenciam suas coleções sem a burocracia paralisante de grandes instituições públicas, o que lhes confere agilidade e versatilidade quanto a seus projetos curatoriais.
No curso em Florianópolis, você horizontaliza o educativo, a curadoria que não se confunde com a materialidade das exposições, e a comunicação, apresentados como um campo de construção de conhecimento e memória por meio de catálogos, recortes de jornais, textos críticos, flyers, a documentação. Diz também que o lugar da obra de arte e das coleções são capazes de alavancar e mudar narrativas históricas. Apesar de todos esses esforços, só as obras sobrevivem?
Emerson Dionisio – É comum confundir a curadoria com a exposição. Contudo, é preciso ter em mente que o funcionamento do ato expositivo não está contido nas intenções do projeto curatorial. O trabalho de curadoria compõe uma mostra. Trata-se de um fator entre outros tantos. Certamente um ponto incontornável em nossos dias, mas não exclusivo. Para um pesquisador, isso é fundamental. Conheço investigadores que me dizem: “a exposição tal aconteceu desta forma x e y”, e questiono: como você sabe? E não é incomum a resposta pautar-se exclusivamente no discurso curatorial. Eu já cometi este erro no início de minhas pesquisas, mas aprendi com boas análises e pesquisas cuidadosas. Hoje temos bons projetos curatoriais, que engajam boa parte dos trabalhadores que compõem o campo artístico. Do artista à segurança, passando por museólogos, educadores, comunicadores, montadores, são coligados para compor um projeto colaborativo em favor das obras. Em muitos casos, a memória dessas colaborações, como boa parte da materialidade construída para uma exposição, se perde. A maioria das instituições não dedica muito tempo à construção de arquivos para suas próprias práticas. A memória da exposição fica depositada no catálogo ou em um folder, por vezes, nem isso. Projetos expográficos, fotografias da montagem, relatos de artistas, muita história se perde no processo. Há muito tempo sabemos que as instituições que preservam sua própria história estão mais aptas a se defender de políticas invasivas.
Ainda no curso, defende o trabalho em equipe, lembra que para a construção de uma pesquisa é necessário a ajuda de um coletivo. Essa coletividade é construída dentro da academia? Ou ela toma um campo mais amplo?
Emerson Dionisio – A formação universitária é um passo importante para a constituição de quadros profissionais especializados. O trabalho com arte, como em outros campos da cultura, exige formação singularizada. Um dos pontos cruciais nesta formação é o aprendizado colaborativo. Não se trata de uma palavra da moda, a colaboração é um dispositivo fundamental para instituições que lidam com as sensibilidades, dos artistas ao público. Trata-se de tecnologia social. A universidade é uma etapa importante neste processo formativo. Muitas outras etapas vão constituir um trabalho coletivo. Portanto, o campo é mais amplo, movido pelas mudanças tecnológicas e seu impacto nas sensibilidades, especialmente do público. Se você acredita que pode fazer seu próprio caminho sozinho, já não entendeu sua própria contemporaneidade. O mesmo pode ser dito da universidade ou das instituições culturais. Estabelecer parcerias é uma questão de sobrevivência.
Ao pensar em sua atuação de pesquisador de acervos e coleções, um historiador da arte que atua em campo, quais dicas poderia dar aos jovens pesquisadores? Quais dificuldades enfrenta? O que move o pesquisador, primeiro o tema ou a obra de arte?
Emerson Dionisio – Uma premissa inicial é necessária: numa coleção, as obras se tornam interdependentes. Portanto, compreender o diálogo entre elas é um ponto crucial. Assim, a primeira dica para a aproximação de uma coleção é perceber que a temporalidade do conjunto não pode se confundir com o tempo do pesquisador. As obras de uma coleção foram chegando e saindo em tempos distintos, muitas vezes ao longo de décadas. Esta é uma percepção necessária para não criarmos a ideia de que uma coleção possui uma totalidade pronta e acabada. Uma coleção é um organismo que se move por meio de interesses pessoais, necessidades práticas, demandas externas, afinidades poéticas. Nas coleções, as obras têm pesos e tempos diferentes. Umas são mais “amadas” que outras. Isso dificulta a própria compreensão do conjunto. Colecionadores não conseguem oferecer a todas as obras um tempo e interesse equânimes. Outro ponto importante diz respeito ao trabalho do historiador da arte. Ao contrário de outros profissionais que buscam primeiro compreender a personalidade dos colecionadores, sejam indivíduos ou instituições, historiadores da arte precisam buscar compreender a personalidade da coleção. Colecionar arte não é corriqueiro em nossas sociedades. Não se confunde com outros modelos de colecionismo, embora as semelhanças possam ser destacadas. Para a arte é preciso utilizar metodologias que possam produzir boas associações, ao mesmo tempo, que não comprometam a singularidade de cada obra. É evidente que o colecionador é importante, mas partimos de uma inversão: perguntamos para a coleção, para o conjunto de obras, qual a personalidade do colecionador? Por mais que um colecionador seja autoconsciente de sua prática e possa oferecer boas interpretações, a coleção poderá trazer respostas distintas. No âmbito da história da arte, utilizamos uma metáfora poderosa: são as obras que possuem seus colecionadores. A pertença se inverte, ao menos na perspectiva metodológica de uma pesquisa. E aqui surge a maior dificuldade da pesquisa com a história de coleções de arte: o acesso a toda a coleção. Pode parecer estranho o que vou dizer, mas colecionadores são seres misteriosos. Novamente me refiro a pessoas e instituições colecionadoras. O mistério é uma das características das coleções. A pesquisa exigirá tempo e paciência; exige a observação sutil e atenta aos pequenos detalhes que possam desvendar a relação entre colecionador e obras.
Como descreve seu modus operandi quando se depara com uma coleção diversa ou mesmo concisa? Quais os seus teóricos chaves para ajudar nessas investigações?
Emerson Dionisio – A primeira inquietação recai sobre em que momento o colecionador se tornou consciência de que possuía uma coleção e não apenas um agregado de obras. Se alguma obra ou algumas obras foram cruciais para essa tomada consciente. No caso das instituições, a pergunta merece uma adaptação: quando surge um projeto de visibilidade propositivo? Em todo caso, o caráter interdisciplinar se impõe. Nesse sentido, autores clássicos conhecidos continuam sendo basilares para compreendermos algumas operações-chave do colecionismo. Walter Benjamin, Jean Baudrillard, K. Pomian, James Clifford oferecem textos importantes que precisam ser conhecidos. Edições e textos de Boris Groys, Paulo Knauss, Bruce Altshuler, José Reginaldo Gonçalves, Marize Malta, Vera Beatriz Siqueira, Gwendoline Corthier-Hardonin, Ulpiano Bezerra de Meneses sobre coleções públicas e privadas nos auxiliam nas questões metodológicas. Além disso, ajudam, como fundo teórico, para enfrentar os desafios de uma pesquisa com muitas obras. E, sobretudo, temos que ser humildes quanto às pretensões de constituir ou encontrar uma teoria geral do colecionismo.
Que impressões leva sobre o que viu da Coleção Collaço Paulo? Como foi a semana em Florianópolis, na Udesc?
Emerson Dionisio – Tive a oportunidade de conhecer a mostra “Sintomas do Agora”, com curadoria de Francine Goudel, e perceber o compromisso da instituição com a pesquisa. Isso significa conhecer a história de cada obra, o que implica sua singularidade e, ao mesmo tempo, seu papel e deslocamento dentro de uma coleção. Exposições com boas curadorias são essenciais para a articulação entre as obras. São dispositivos que ajudam a todos, do público aos colecionadores, a evidenciar características coletivas da coleção. Quais elementos técnicos, estilísticos, linguagens, temporalidades conformam a coleção? Na Coleção Collaço Paulo, percebem-se os atravessamentos temporais e geográficos, que orientam a coleção, o investimento na história da arte de Santa Catarina, brasileira e sul-americana, por exemplo. Para o público, pode parecer que tais atravessamentos e articulações são “naturais”, e não há problema nisso, mas sabemos que é fruto de muito trabalho autoconsciente e profissional. Foi justamente isso que encontrei na instituição e na coleção, muito trabalho.
*Entrevista publicada em 25/09/2025, realizada pela equipe do Instituto Collaço Paulo – Joana Amarante, coordenadora do Núcleo Educativo, e Néri Pedroso, jornalista, responsável pela produção de conteúdo e comunicação.
*Professor doutor Emerson Dionisio na mostra “Sintomas do Agora”, diante de “Jongo” (c. 1930), de Pedro Luiz Correa do Araújo. NProduções / Foto Divulgação