“Esse cara é bom”, diz o colecionador Marcelo Collaço Paulo ao falar pela primeira vez sobre “Santo” (2022), um óleo sobre tela de 200 x 200, de Miguel Afa. Plenamente tocado pela abordagem pictórica do artista, faz a aquisição da obra com a Danielian Galeria, no Rio de Janeiro, e pede para trazê-la de imediato a Florianópolis (SC), onde é vista no espaço administrativo do Instituto Collaço Paulo – Centro de Arte e Educação. A partir do dia 2 agosto, o trabalho – cedido por empréstimo – passa a ocupar um outro lugar, onde ganha visibilidade na mostra “Dos Brasis: Arte e Pensamento Negro”, um projeto de fôlego do Serviço Social do Comércio (Sesc) que abre no Sesc Belenzinho, em São Paulo.
“Santo” retrata um homem negro, de meia idade, que desce a escadaria de uma favela. Nas mãos, carrega uma porta. Na boca, um cigarro. A camisa aberta expõe o peito no qual sobressai um colar amarelo que combina com uma pulseira, da mesma cor, no punho direito. Ao fundo, no parapeito de uma janela, uma pequena bandeira do Brasil. O losango, que remete às riquezas do País, faz conexão com os adereços no sentido de que o amarelo é exceção nesta paleta em tons ocres que surpreende em sucessivas camadas pardacentas.
Do Rio de Janeiro, onde nasce em 1987, cria do Complexo do Alemão, Afa aproxima a sua arte ao ativismo que aborda o racismo estrutural no Brasil, denuncia as injustiças sociais, subverte os símbolos da estética negra, da masculinidade negra, expõe crises existenciais. Enfim, uma produção que versa sobre violência, política e poder.
Ao comentar o processo de criação, o artista situa o desejo de abarcar memória. “Eu trato as cores de maneira turva e com ausência de saturação propondo uma sensação de sonho/memória que flerte com a ideia de metafísica, como algo quase imaterial”, diz ele, algo que em parte sintoniza com a primeira percepção do colecionador Marcelo Collaço Paulo: “Cores sobrepostas, num degradê em tons pastéis e terrosos. Uma personagem segura uma porta, que também parece uma janela, desce a escadaria do morro de uma comunidade. Meus pensamentos me levaram para ‘uma janela para o céu’ e as cores me remeteram a Georgia O’ Keeffe (1887-1986), traduzindo como ‘o meu deserto é aqui’. Apaixonei sem saber o nome da obra, não precisei de legendas ou explicações, simplesmente ela me captou pelo imaginário e pela força e qualidade da pintura”, conta Collaço Paulo.
O objetivo da mostra “Dos Brasis: Arte e Pensamento Negro”, organizada pelo Serviço Social do Comércio – Sesc Belenzinho, em São Paulo, é a partir de 2024, promover nos próximos dez anos a circulação em espaços do Sesc. A exposição, a mais abrangente dedicada à produção de artistas negros brasileiros, envolve 240 representações de todos os Estados brasileiros. O único catarinense, de Joinville, a participar é Sérgio Adriano H.
A aquisição de “Santo” e o seu empréstimo ao Sesc pelo Instituto Collaço Paulo possibilita estreitar o contato com o artista que concede uma entrevista com exclusividade à jornalista Néri Pedroso. As conversas, iniciadas no fim de 2022 são retomadas, de modo mais concreto, em maio de 2023, quando, juntos, decidem aglutinar o conjunto de perguntas por blocos.
Satisfeito por saber que a narrativa e as histórias do seu trabalho cheguem a Florianópolis, Afa crê que “foram traçadas pontes capazes de integrar as experiências periféricas do Rio de Janeiro para Florianópolis” e diz que gostaria muito de conhecer melhor a Coleção Collaço Paulo.
Sobre você e academia
De que modo as artes visuais entram na sua vida? Como se opera o processo de constituição profissional? Em que momento decide ser um artista? É bem significativa a distância entre a academia e a arte de rua, que você também pratica. Como ajusta a questão na sua caminhada de estudos? A arte faz olhar para nós mesmos. A academia mudou o seu modo de se olhar ou você provocou fissuras no modo de olhar da academia?
Miguel Afa – Minha introdução nas artes parte da minha experiência com o graffiti quando eu ainda era um menino de 13 anos, em 2001. Desde então foi uma relação de paixão com a produção de imagens, onde mesmo sendo um jovem periférico do Complexo do Alemão tive o privilégio aliado a coragem e necessidade de tomar a produção visual como minha ferramenta de trabalho, atravessando todas as possibilidades “mercadológicas” desde pintar uma placa para a costureira da rua aos 13 anos até produzir uma animação para o plim-plim da TV Globo aos 15. Eu tomo todas essas experiências como meu processo de inserção e construção como um profissional das artes, logo ser artista não foi uma decisão e sim construção e condição. Em 2012 comecei o curso de pintura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde tive acesso a informações que auxiliaram o desenvolvimento na minha trajetória, porém a passagem foi curta e não me formei, costumo dizer que o ofício de pintor e os artistas com que tive convívio são o que de fato vêm me formando nos últimos 22 anos de produção.
Sobre a pintura
Como a pintura entra na sua vida? Como são os seus procedimentos de criação? Usa a fotografia? Planeja? Demora até fechar um trabalho? Chama a atenção na sua pintura a aparente preponderância da figuração masculina e a paleta de cores. Os personagens são reais? Têm identidade? Os tons ocres na paleta e sucessivas camadas de tonalidades surpreendem. Quais são as suas referências?
M.A – Já adotei muitos métodos que levam a concepção de uma pintura, atualmente o processo criativo acontece através de registros fotográficos que venho fazendo no meu dia a dia, das realidades e experiências que me atravessam e produzem um relacionamento poético. Muitas das vezes, escrevo sobre essas vivências, existe uma reflexão no espaço de tempo entre o que foi observado até a materialização da própria pintura, o que faz com que a obra tenha uma relação de pertencimento e memória, memórias de afeto atribuídas aos corpos que são estigmatizados como marginais, corpos masculinos aos quais raramente são atribuídos aspectos de benignidade. Muitas das vezes, essa imagem representa uma figura real; outras vezes, trata-se de uma representação de um imaginário, tanto a paisagem como o corpo. E, por se tratar de memória, trato as cores de maneira turva e com ausência de saturação propondo uma sensação de sonho/memória que flerte com a ideia de metafísica, como algo quase imaterial. Minhas referências circulam entre os modernistas e muitos artistas contemporâneos decoloniais.
Sobre “Santo”
“Santo” – qual a gênese desta obra, como foi a criação? Imaginou no passado que um colecionador de Santa Catarina poderia se “apaixonar” pela obra? Conhece Florianópolis, gostaria de vir conhecer o lugar onde está “Santo”? Ou é desapegado da obra? “Santo” integrará em São Paulo, “Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro”, exposição dedicada à produção de artistas negros, numa parceria inédita entre os regionais do Sesc em todo o País. Como vê a sua inserção neste panorama?
M.A – “Santo” parte de uma série de trabalhos que eu chamo de “Sagrado Favelado”, nas quais saliento a sacralidade que habita nos corpos periféricos, e como podemos identificar esses aspectos de benignidade negados a essas existências pela sociedade. A obra trata de um pai de família que todos os dias desce as escadarias do morro em busca dos subsídios necessários para o sustento da família. Peregrinando e tendo que se estender da terra para o céu, subindo a escada de Jacó. Não abrindo, porém, arrancando a porta dos céus onde se derramam todas as bênçãos sobre a sua família. Fico feliz que a narrativa e as histórias que conto através do meu trabalho cheguem até Florianópolis, acredito que foram traçadas pontes capazes de integrar as experiências periféricas Collaço Paulo e criar laços fraternais, pois sou convicto que a arte é o grande condutor que nos conecta. E o desdobramento que obtivemos com a integração de “Santo” na exposição “Dos Brasis” que, além de engrandecer o trabalho, colabora grandiosamente para identificar e propor visibilidade às produções de artistas racializados do País.
Sobre a arte e o sistema
Arte contemporânea serve para o quê? O que pensa sobre o caráter inacessível da arte ao homem comum? Algo incomoda no sistema de arte? O quê?
M.A – Costumo dizer que o espaço de uma galeria de arte ou um museu, por mais populares que possam ser, se mostra agressivo ao cidadão não pertencente ao universo das artes, como foi para mim durante anos, mesmo eu sendo um artista. É de fato necessário estabelecer diálogos direto às pessoas comuns. A arte contemporânea é o pensamento do nosso tempo, será a memória da produção intelectual do agora. É necessária uma consciência entre artistas, galeristas, colecionadores e curadores de que todo sistema mercadológico que envolve as artes é importante, mas não o suficiente, principalmente quando falamos desse colecionismo de arte “PERIFÉRICA”, que tem que atingir o povo. Por essas narrativas serem pertencentes ao povo, é necessário criar métodos que atraiam os populares. Não é elegante adquirir uma obra que conte uma história tão plural e a deixe trancada em um galpão fechado.
Sobre arte e favela
Como acompanha as discussões em torno de temas decoloniais na arte brasileira? “A arte contemporânea vai virar favela” foi o título da matéria da revista Select. De que modo vê a afirmação?
M.A – As produções que usam as experiências que se vivenciam nas favelas como matéria-prima, é um recorte da nossa história que eu acredito que somente quem as viveu pode contar. Mas acredito também que o Artista Favelado pode ser o que quiser e falar sobre o que quiser não se pode condicionar o artista por ser preto e favelado a ter que fazer uso dessas narrativas. Devemos incentivar a produção de arte preta abstrata, de pesquisas desses artistas que tratem de suas subjetividades também.
Miguel Afa, 2022
Santo
Óleo sobre tela
200 x 200 cm
Coleção Collaço Paulo
Eduardo Marques/Foto Divulgação
Serviço
O quê: exposição “Dos Brasis: Arte e Pensamento Negro”
Quanto: 2.8.2023. Até 28.1.2024
Onde: Sesc Belenzinho, rua Padre Adelino, 1.000, bairro Belenzinho, São Paulo (SP), tel.: (11) 2076-9700
Quanto: gratuito
*Entrevista publicada em 31/07/2023, realizada por Néri Pedroso, jornalista, responsável pela produção de conteúdo e comunicação do Instituto Collaço Paulo.