Chamada como rainha das cronologias, com bom humor Denise Mattar também se autodenomina assim, sem problemas, porque sabe como são importantes as cronologias e o quanto é difícil organizá-las, árduo trabalho que exige pesquisa e paciência investigativa, além da capacidade de relacionar temas e abordagens em amplo arco cronológico. A curadora da mostra “Elke Hering – Metamorfoses”, aberta até 2 de dezembro de 2023, no Instituto Collaço Paulo – Centro de Arte e Educação, faz seu primeiro projeto curatorial no Estado amparada no trabalho da pesquisadora Daiana Schvartz e no acervo documental da filha da artista, Rafaela Hering Bell.

Em Florianópolis, por uma semana, depois de se concentrar na montagem, abertura da mostra, na palestra no programa Instituto Conversa, em entrevistas e passeio em ateliê de artista, transita pelos endereços de arte da cidade, prestigia a artista Sara Ramos no lançamento de seu catálogo na Helena Fretta Galeria de Arte, volta à Lagoa da Conceição, lugar em que esteve pela primeira nas filmagens de “Prata Palomares”, em 1972.

Entre 1972 e 2023, quando retorna a Florianópolis, consolida uma carreira como curadora. Como tal, atua no Museu da Casa Brasileira (1985/87), no Museu de Arte Moderna de São Paulo (1987/89), ambos em São Paulo, e no Museu de Arte Moderna (1990/97), no Rio de Janeiro. Como curadora independente realiza mostras de artistas como Di Cavalcanti (1897-1976), Flávio de Carvalho (1899-1973), Ismael Nery (1900-1934), Pancetti (1902-1958), Iberê Camargo (1914-1994), Sacilotto (1924-2003), Anita Malfatti (1889-1964), Samson Flexor (1907-1971), Portinari (1903-1962), Alfredo Volpi (1896-1988), Guignard (1896-1962), Yutaka Toyota, algumas das quais premiadas pela Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

Incansável e curiosa, em todo o lugar que vai, Mattar atende os interessados nos temas curatoriais, no circuito de arte do Brasil, na pesquisa em torno de consagrados do modernismo, na expertise em Di Cavalcanti (1897-1976), nas articulações do mercado e do colecionismo. O vasto currículo e experiência a trazem de volta a Florianópolis, para reencontrar Elke Hering e rever a própria trajetória, juntas no set de “Prata Palomares” e agora, em 2023, por meio do colecionismo que a aproxima de Marcelo Collaço Paulo. Juntos, acertam a curadoria da terceira exposição realizada no Instituto Collaço Paulo, a primeira a enfocar a produção feminina.

Nesta entrevista concedida por escrito à jornalista Néri Pedroso, antes de sua estada em Florianópolis, esboça-se uma reflexão sobre diferentes aspectos de uma atuação do circuito de arte brasileira, uma conversa que segue o percurso e a memória pessoal de Mattar, passa por Martinho de Haro (1907-1985), e seu filho Rodrigo (1939-2021), mas também pelas pegadas de Elke Hering (1940-1994), desvenda o pensamento de uma apaixonada sobre a arte brasileira que defende a livre expressão com ênfase e, assim, justifica parte do conceito curatorial e os procedimentos da artista que se ajustam de acordo com os momentos vividos entre décadas, as cidades e as técnicas por ela adotadas.

A exposição em Florianópolis, diz Mattar, “se encaixa na proposta de realizar uma análise mais consciente dos mecanismos perversos do circuito de arte, que ditam modas, impõem regras, e ao final negam aos artistas o direito de livre expressão. A qualidade e a integridade do artista em cada momento de sua produção é o que importa, e isso é evidente em Elke”.

 

Quais os artistas do Sul do País que já ganharam sua atenção como pesquisadora e principalmente curadora? No RS, já fez curadoria de Iberê Camargo.

Denise Mattar – No ano passado fiz para a Fundação Iberê, uma grande retrospectiva de Maria Lídia Magliani (1946-2012), artista gaúcha, de excepcional qualidade, cuja obra estava totalmente esquecida. A exposição foi acompanhada de uma publicação em dois cadernos, um apresentando as obras da artista e o outro textos dela e sobre ela. Também em 2022 realizei no Museu Nacional de Brasília a exposição “Modernismo Expandido”, no qual apresentei cinco conjuntos de obras dos estados de Pernambuco, Ceará, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. O segmento gaúcho reunia obras de Ado Malagoli (1906-1994), Carlos Scliar (1920-2001), Danúbio Gonçalves (1925-2019), Glauco Rodrigues (1929-2004), Glênio Bianchetti (1928-2014), Ailema Bianchetti, e Francisco Stockinger (1919-2019). Em destaque, a instalação Oca-Maloca de Maria Tomaselli, artista ainda no Rio Grande do Sul, da qual já fiz exposições no Rio (Centro Cultural Correios), em São Paulo (Caixa Cultural) e no Rio Grande do Sul (Margs), além de livro retrospectivo em coautoria com a escritora Marcia Tiburi. Em 2018 fiz no Rio de Janeiro uma grande exposição sobre Glauco Rodrigues, seguida do livro “Glauco Rodrigues: Crônicas Anacrônicas e Sempre Atuais do Brasil” (Editora Capivara), que faz uma retrospectiva da obra do artista, tem uma cronologia completa (que nunca havia sido feita anteriormente), e ainda reúne uma entrevista do cineasta e pesquisador gaúcho José Teixeira de Brito com o crítico francês Nicolas Borriaud, que realizou mostra na École de Beaux-Arts em Paris e uma Sala Especial na Bienal de Istambul (2019).

Em Santa Catarina é a primeira vez que assume um projeto curatorial?

Denise – Embora faça regularmente exposições pelo Brasil é a primeira que faço em Florianópolis.

Quais são suas referências da arte moderna e contemporânea de Santa Catarina?

Denise – Entre os artistas modernos eu já conhecia a obra de Martinho de Haro, que, em pé de igualdade com a produção de Pancetti (1902-1958) e Guignard (1896-1962), mescla tradições clássicas à liberdade de composição e cor. (A exposição no instituto foi uma agradável surpresa!). Na juventude, conheci pessoalmente e bastante bem o poeta e pintor Rodrigo de Haro, tenho até um retrato meu feito por ele, e sempre admirei sua obra, inteiramente pessoal, eivada de referências mágicas, míticas e fantásticas. Conheço pouco a produção contemporânea de Santa Catarina, mas admiro muito a obra de Walmor Corrêa.

Como é possível explicar a baixa visibilidade no Brasil de uma produção como a de Elke Hering? É possível falar o mesmo de Martinho de Haro?

Denise – Eu diria que além do fator inequívoco de residirem fora do hegemônico eixo Rio-São Paulo, há outras questões envolvidas. No caso de Martinho, lembremos que o artista foi premiado em 1937, viveu em Paris e participava do restrito circuito artístico nacional da época. Entretanto, nos anos 1950 e 60 surgiu uma rejeição à arte figurativa e a soberba concretista tornou-se um fenômeno internacional. Na década de 1970, quando houve no Brasil um movimento de resgate dos artistas do primeiro e segundo modernismo, Martinho estava isolado em Florianópolis, e, embora reconhecido por críticos como Walmir Ayala (1933-1991) e José Roberto Teixeira Leite, não foi integrado nessa releitura. No caso de Elke, ela participou ativamente desse momento particularmente fervilhante dos anos 1970. Nesse período seu trabalho estava alinhado com os ideais da época e alcançou reconhecimento da crítica nacional. Entretanto, no final da década de 1970, houve um esvaziamento do cenário artístico. A efervescência desapareceu, houve uma diminuição significativa de exposições e de produção crítica, os grupos de artistas se extinguiram e o individualismo se impôs. A breve ressureição da pintura em meado dos anos 1980 foi seguida de uma hegemonia da arte conceitual, seguida de uma nova onda de valorização do concretismo e neoconcretismo. Não por acaso artistas como Ivald Granato (1949-2016), Claudio Tozzi, Gregório Gruber, José Roberto Aguillar, Luís Áquila, entre muitos outros, também caíram no esquecimento – apesar de serem homens e residentes no eixo Rio-São Paulo. No caso de Elke, o fenômeno se agravou mais ainda por sua opção em voltar a trabalhar com escultura em bronze. Um trabalho forte e incisivo, mas à contracorrente da produção da época.

A história da arte ganha ajustes e atualizações sob os paradigmas decoloniais e antipatriarcais. A exposição de Elke Hering se enquadra neste contexto ou poderia ser enquadrada de um outro modo?

Denise – A exposição de Elke não se encaixa nas atualizações decoloniais e antipatriarcais, pois não acho que, no circuito de arte, ela tenha sido prejudicada por ser mulher. Como eu disse anteriormente a maior parte dos artistas da geração dos anos 1970 está atualmente bastante obscurecida. Entretanto a exposição sem dúvida se encaixa na proposta de realizar uma análise mais consciente dos mecanismos perversos do circuito de arte, que ditam modas, impõem regras, e ao final negam aos artistas o direito de livre expressão. A qualidade e a integridade do artista em cada momento de sua produção é o que importa, e isso é evidente em Elke.

Como conhece Elke Hering?

Denise – Conheci Elke em 1972, durante as filmagens de “Prata Palomares”, em Florianópolis, eu muito jovem e assistente de cenografia de Lina Bo Bardi e Elke no elenco. Logo em seguida, reencontrei Elke no Rio, pois terminado o filme fui trabalhar com Franco Terranova (1923-2013), na “Petite Galerie”. Elke foi uma das artistas escolhidas para realizar um múltiplo para a galeria. Depois de alguns anos sem vê-la, a reencontrei em São Paulo, na Escola Nova, uma escola de joalheria dirigida por mim, Ricardo Mattar e Marco Dualilibi. Chegamos a realizar um curso de joalheria na galeria da Elke, em Blumenau, e Marco fez algumas joias belíssimas com seus cristais.

E agora, ao fazer a curadoria, o que descobre sobre ela?

Denise – Descobri muitas coisas, tanto sobre a vida, quanto a sua obra. Elke era uma doce guerreira, poderosa e sensível, forte e frágil. Seu trabalho reflete essa ambiguidade. Ela mudava radicalmente de tempos em tempos, indo do ferro soldado à maciez do plavinil, da monocromia à cor, para em seguida voltar à dureza e à monocromia do bronze e do concreto. Ao final, a obra evoca a maciez e a luz. Por isso decidi dar à exposição o título de “Metamorfoses”, descobrindo posteriormente que ela deu o mesmo nome, não a uma, mas a várias de suas obras. Tive grande parte do trabalho facilitado pela pesquisa desenvolvida por Daiana Schvartz, que se dedica há alguns anos a estudar a artista, tornando-se por isso a consultora da exposição.

O que é fundamental numa curadoria, o que não pode faltar? Quais são as suas maiores preocupações diante de um trabalho deste porte?

Denise – A alma de uma curadoria é a pesquisa, sem ela é impossível fazer um bom trabalho, mas, no caso de Elke, a etapa mais complexa foi selecionar o material e decidir o que não ia ser apresentado. A filha Rafaella Bell tem um arquivo repleto de fotos, cartas, desenhos, etc., material parcialmente sistematizado por Daiana, o que possibilitou fazer a cronologia ilustrada que abre a exposição. A coleção de Jeanine e Marcelo Colaço reúne todas as fases da obra da artista, e também permitiu a apresentação do percurso completo de Elke, mas, o espaço expositivo sempre impõe o limite físico, a ser respeitado. A mostra tem que fluir, as obras devem respirar, é necessário criar um diálogo entre elas. Uma exposição é um ensaio visual, portanto tem que selecionar, editar, e com dor no coração escolher o que não estará na exposição. Como curadora, considero de extrema importância a comunicação com o público. Quero que o visitante entenda o percurso, o processo e a vida do artista. Por isso sempre divido a exposição em núcleos, com introdução escrita em linguagem bastante didática, acessível a todos. No caso de Elke foi fácil fazer esse divisão porque a obra dela tem fases definidas. Também me preocupo em fazer uma montagem que utilize elementos sedutores: cor, luz e até uma certa dramaticidade. Assim, na mostra de Elke utilizei cores neutras para os desenhos e as esculturas em bronze, e paredes coloridas: verde, azul e amarelo, quando sua obra busca a brasilidade. O toque mágico ficou para as esculturas em cristal, dando a eles o tratamento de joias.

Como situa o papel dos colecionadores dentro do sistema de artes visuais e diante do seu trabalho?

Denise – Um circuito de arte só funciona bem com instituições fortes, capazes de manter uma programação constante, realizar exposições, cursos e manter uma política de aquisições. Nada disso acontece no Brasil. Na maior parte do país os museus têm problemas básicos de manutenção, funcionamento, e nenhum dinheiro para comprar obras para seu acervo. Por isso as coleções particulares são tão importantes. Quando faço uma exposição retrospectiva, na maior parte das vezes, tenho mais obras vindas de coleções particulares do que de museus.

Você conhece alguns colecionadores no Brasil. Quais os cuidados que assume neste contato, qual a sua importância dentro da sua atuação?

Denise – Sim, conheço, de vários Estados. Visito regularmente coleções particulares, e tenho muitos arquivos e livros fornecidos pelos colecionadores. O contato com eles é fundamental para o desenvolvimento de um trabalho de curadoria, pois alarga, e muito, as possibilidades de localização de obras, mas é uma relação de confiança. Eu estou tirando obras da casa do colecionador para serem expostas, e por isso todos os cuidados são tomados: transporte e embalagem especializados, seguro, e acompanhamento museológico, na coleta, montagem, desmontagem e retorno.

Você conhece o casal de colecionadores Jeanine e Marcelo Collaço Paulo há algum tempo, tendo solicitado o empréstimo de um Visconti para a mostra “150 Anos de Eliseu Visconti”, em São Paulo. Agora, é a primeira vez que entra em contato com parte da Coleção Collaço Paulo. Quais são as impressões?

Denise – Quando fiz a exposição de Eliseu Visconti (1866-1944), achei imprescindível ter a obra “Raios de Sol”, do início da década de 1930. É uma pintura que retrata a entrada da casa de Visconti em Teresópolis (RJ), um trabalho especial que emana uma atmosfera romântica e carinhosa. Descobri que a obra era do casal de colecionadores Jeanine e Marcelo, solicitei o empréstimo e fui prontamente atendida. Além disso, bati um longo papo com Marcelo e, veja só, contei para ele que conheci Florianópolis nas filmagens de “Prata Palomares”, e acabamos falando de Elke Hering… Sete anos depois, estou fazendo a exposição sobre ela.  Fiquei bastante impressionada com o profissionalismo do instituto e com o lugar que ele já ocupa nas atividades culturais da cidade, inaugurado há tão pouco tempo. É uma demonstração do que disse antes, da importância do papel das instituições culturais, mas confesso que conheço poucos espaços construídos pela generosidade de um particular, como é o caso do Dr. Marcelo, e não de uma empresa. Na verdade, uma pessoa que tomou para si uma responsabilidade que deveria caber ao Estado.

Conhecedora do modernismo e da produção dos modernistas como poucos no Brasil, pensa que ainda há alguma coisa a ser dita, vista ou revista neste campo de saber?

Denise – Sempre acho que há coisas a descobrir. A Semana de 22 não foi tão importante no momento que aconteceu, porém tornou-se um marco, em torno do qual muito se desenvolveu. Não sou partidária do revisionismo demolidor que marcou as comemorações do centenário, mas foi interessante ver outros modernismos que aconteceram no Brasil, eu mesma realizei a mostra “Modernismo Expandido”, como citei anteriormente. Mas acho que há algo muito importante que não mereceu a atenção devida nessa revisão: os artistas acadêmicos. A exaltação do modernismo fez crer que nossos acadêmicos não tinham valor, mas isso não é verdade, basta ver artistas como Visconti, Georgina de Albuquerque (1885-1962), Belmiro de Almeida (1858-1935), entre outros. É algo a ser dito e visto.

Você é incansável quando trabalha com arte? De onde vem tanta energia?

Denise – Sou uma pessoa de natureza apaixonada e amo o que faço. Na minha vida tudo é trabalho, e nada é trabalho…

Na sua trajetória, o que mais orgulha? O que gostaria que fosse eternizado neste trabalho e descobertas?

Denise – Tenho orgulho das exposições que fiz, pois a maior parte delas tem publicações, quase todas esgotadas, que são consideradas fontes de pesquisa pelos estudiosos da área. Naturalmente tenho as exposições preferidas, mas devo te confessar que são muitas…. Entretanto tem um episódio do qual tenho especial orgulho: o caminho que encontrei na pandemia. Comecei a fazer lives e elas fizeram sucesso, falei com artistas do Brasil inteiro, organizei meus arquivos para poder prepará-las, trabalhei muito. Terminada a pandemia, fiquei emocionada ao encontrar muitas pessoas agradecidas. “Você foi uma companhia, eu ficava esperando a sua live…” Eu realmente me reinventei. Não sou jovem e naquele fatídico março de 2020, eu mal sabia usar o Instagram. Aprendi rapidinho, rsrsrs.

Quem é Denise Mattar, o que melhor define a mulher?

Denise – Sou uma pessoa muito séria e profissional, mas apaixonada, e com uma pitada de loucura. Gosto da vida, das pessoas e de arte. É isso.

 

*Entrevista publicada em 24/07/2023, realizada por Néri Pedroso, jornalista, responsável pela produção de conteúdo e comunicação do Instituto Collaço Paulo.

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