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Nas subjacências de raridades

Sára Fermiano fala sobre a profissão
no primeiro Instituto Conversa do ano

Natural de Itajaí, nascida em 1957, Sára Fermiano ancora a sua vida em Florianópolis desde 1975, onde pavimenta uma trajetória profissional pautada por raros concorrentes. Poucos são aqueles que se dedicam à conservação e restauração de obras artísticas. Em Santa Catarina é possível contar nos dedos os que efetivamente atuam e desfrutam de credibilidade.

Licenciada em educação artística na habilitação de artes plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), onde se especializou em museologia, aposentou-se como servidora pública estadual, vinculada à Fundação Catarinense de Cultura (FCC), lotada no Ateliê de Conservação-Restauração de Bens Culturais Móveis (Atecor) durante 26 anos, lugar em que prestou serviços especializados em conservação-restauração de pinturas de cavalete e esculturas em madeira policromadas. Orientou também, até 2012, o programa de estágio supervisionado em Conservação-Restauração de Bens Culturais Móveis durante 17 anos. A partir de então passou a trabalhar em seu ateliê particular.

Integra a Associação Catarinense de Conservadores e Restauradores de Bens Culturais (ACCR), onde exerce o cargo de tesoureira. Agraciada com a medalha do mérito funcional Alice Guilhon Gonzaga Petrelli em 2009, por indicação dos funcionários da FCC e com a medalha do Mérito Cultural Cruz e Sousa em 2012, por indicação do Conselho Estadual de Cultura.

O seu cotidiano profissional obriga a exercitar práticas que envolvem palavras como fissuras, fraturas, poros, gravidade hidrostática, viscosidade, migração de solventes, evaporação, ebulição, calor, ácidos, acetonas, termos que remetem a um laboratório. Sim, o ateliê de um restaurador pode, de certo modo, confundir-se com um local voltado às experiências científicas. Atividade complexa, o trabalho solicita reversibilidades e intervenções mínimas. O conhecimento e a pesquisa em amplo espectro são alicerces fundamentais nesta profissão.

Sob as mãos de um restaurador estão quase sempre obras artísticas e acervos valiosos pelo aspecto econômico ou afetivo. Sára Fermiano é a convidada do primeiro Instituto Conversa de 2024, quando, integrada à mostra “Etérea”, falará sobre esse instigante universo. Programa vinculado às atividades do Núcleo Educativo do Instituto Collaço Paulo – Centro de Arte e Educação, a iniciativa ocorre de forma presencial em 12 de março, às 17 horas. Na ocasião, na palestra “O Acervo em Tratamento”, ela desvenda um pouco dos mistérios, surpresas e descobertas feitas no ateliê. Conta também de sua atuação na instituição iniciada em 2006, com a obra “Chimarrão” de Martinho de Haro (1907-1985). “Pretendo falar sobre os desafios que enfrentei com determinadas obras da coleção. Seria sobre limpeza de camada pictórica, remoção de repinturas e consolidação de suportes”, antecipa ela, que nesta entrevista exclusiva, concedida à jornalista Néri Pedroso, também revela outras emoções enfrentadas diante de alguns trabalhos artísticos, como recentemente com uma raridade, “São João Batista e Cordeiro” (fim séc. 18/início 19), o único Xavier das Conchas (1739-1814) existente em Santa Catarina. “A obra que mais me deixou nervosa devido à sua fragilidade. Havia o perigo de o vidro de proteção do oratório, que estava quebrado, tombar para o interior e danificar muito aquele trabalho minucioso das conchas”, diz ela que entende o amor, a paciência e a tranquilidade como atributos estruturantes de uma profissão que exige vasculhar no universo das subjacências.

 

Como e por que você faz uma escolha profissional neste ramo de atuação?
Sára Fermiano – Entrei na Fundação Catarinense de Cultura em 1981, com 24 anos e, em 1985, fui convidada pelo professor Aldo João Nunes (1925-2004), que havia recém-criado o Atecor, para trabalhar com ele e com Susana Cardoso, ambos formados pelo Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais (Cecor) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Muito importante, o convite deu oportunidade de aprender com dois profissionais muito comprometidos, que me orientaram e guiaram até 1995 no Atecor, quando ambos deixaram a FCC. Desde o início, fiquei entusiasmada com as possibilidades que essa área de atuação podia oferecer. Foi uma escolha que me proporcionou muitas alegrias e também desafios. Conhecer uma obra de arte em suas características mais particulares, descobrir a beleza escondida sob camadas de sujidades e vernizes oxidados são as alegrias; os desafios são inúmeros e a cada obra é preciso reestudar os procedimentos, ter certeza de que a escolha dos materiais e técnicas são os mais adequados para aquele problema específico, ter paciência para realizar todas as etapas, aguardar os resultados.

Qual a lembrança mais antiga de sua atuação como restauradora?
Fermiano – Uma obra sacra do Museu Histórico de São Francisco do Sul, atacada por insetos xilófagos. O trabalho foi realizado no Atecor, sob orientação e supervisão do professor Aldo Nunes. Havia perdas significativas na face de uma imagem de roca – são imagens de vestir, de Nossa Senhora das Dores, que foram recuperadas com encáustica, uma técnica que utiliza cera de abelha, resina dammar e pigmentos. Exige muito cuidado na mistura das cores e na temperatura da cera-resina, para que o resultado seja adequado. É interessante salientar que o conservador-restaurador, prepara muitos dos materiais que utiliza em seu trabalho, desde a cera-resina usada na encáustica, até colas e vernizes.

Qual a peça mais marcante até hoje – pela beleza, pela dificuldade, pelo longo tempo exigido?
Fermiano – Algumas obras ficam marcadas, seja pela dificuldade que apresentam durante o processo de conservação-restauração ou pela beleza excepcional. Tenho o privilégio de trabalhar com obras extraordinárias e cada uma proporciona alegria, expectativa, preocupação, novos desafios. A obra que mais me impactou foi aquela em que outra pintura cobria completamente a original. Os testes iniciais para remoção de um verniz muito escuro revelaram um fundo claro e a possibilidade de ser retirado com segurança. Durante esse processo, descobrimos que na verdade havia uma pintura subjacente mais antiga, de muita qualidade e em ótimo estado de conservação sob a pintura que estava aparente. Remover essa repintura foi desafiador e também gratificante. É uma emoção finalizar e entregar uma obra assim.

Na condição de profissional envolvida com conservação e restauro como vê a Coleção Collaço Paulo?
Fermiano – É uma coleção magnífica que oferece uma chance maravilhosa de conhecer e estudar algumas destas obras, o público que gosta de arte recebeu um verdadeiro presente com a criação do instituto e a decisão do casal Marcelo Collaço Paulo e Jeanine Gondin Paulo em expor sua coleção e para os estudiosos é uma oportunidade incrível. Como conservadora-restauradora estou tendo condições únicas de mergulhar a fundo em uma obra, conhecer os detalhes referentes aos materiais constitutivos, compreender as técnicas utilizadas, como e por que está ocorrendo o processo de deterioração. Observar muito de perto as pinceladas, as cores, a textura. É um prazer imenso, um privilégio enorme. Essa coleção é tão diversa e oferece muitas possibilidades para estudo, pude entrar em contato com muitas que me encantaram pela qualidade, pela técnica. Testemunhar a preocupação e cuidado com a preservação do patrimônio cultural é motivo de alegria para nós que atuamos nessa área, tanto que a Associação Catarinense de Conservadores e Restauradores de Bens Culturais (ACCR) reconheceu esse trabalho e ofereceu o Certificado de Amigo do Patrimônio Cultural ao Instituto Collaço Paulo em 2023.

Qual a peça restaurada da Coleção Collaço Paulo que mais deu trabalho? Qual a mais desafiadora, a que deu mais nervoso?
Fermiano – A que deu mais trabalho foi uma obra da Elke Hering (1940-1994), uma pintura sobre tela que recebi bastante degradada. Foi muito difícil e trabalhoso todo o processo, desde a fixação da camada pictórica, a planificação do suporte e a limpeza. Já os desafios que enfrentei foram muitos, como por exemplo, tomar coragem para remover o verniz de uma determinada obra, pois o risco de danificar a camada pictórica é a maior preocupação. Uma Santa Catarina pintada sobre cobre e com douramento, por exemplo, exigiu inúmeros testes com soluções químicas em pontos minúsculos até que a decisão pudesse ser tomada. A obra que mais me deixou nervosa foi o Xavier das Conchas, devido à sua fragilidade. Havia o perigo de o vidro de proteção do oratório, que estava quebrado, tombar para o interior e danificar muito aquele trabalho minucioso das conchas.

Desde quando atende o casal de colecionadores e como define o relacionamento dessa trajetória? Lembra o começo do trabalho, qual a primeira peça?
Fermiano – O relacionamento é de muita confiança por parte do casal, de incentivo a aceitar os desafios. Em algumas ocasiões Dr. Marcelo Collaço me estimulou a tomar coragem em aceitar determinado trabalho, talvez ele já não lembre. Mas isso foi importante para que eu tomasse decisões que me impulsionaram a querer superar outros desafios. O que sinto é que meu trabalho é valorizado e procuro fazer o melhor para retribuir à altura. Lembro que comecei em 2006 com a obra “Chimarrão” de Martinho de Haro. É a figura de um homem da serra catarinense com sua cuia de chimarrão. O processo de intervenção nas obras de Martinho de Haro é muito gratificante, as respostas são muito boas e os resultados bem satisfatórios. Tive oportunidade de trabalhar com muitas obras desse artista que estão nos acervos do Museu de Arte de Santa Catarina (Masc) e do Museu Histórico de Santa Catarina (MHSC), no período em que estive atuando no Ateliê de Conservação-Restauração de Bens Culturais Móveis, vinculado à Fundação Catarinense de Cultura. Então, quando recebi esse primeiro compromisso, foi com muita alegria que aceitei, pela oportunidade de trabalhar com a obra de um artista que conheço bastante.

Xavier das Conchas: como foi esse contato diante da heterogeneidade dos materiais adotados na obra?
Fermiano – Foi de receio, pela fragilidade dos materiais envolvidos e pela sua antiguidade, mas também de curiosidade, vontade de conhecer bem de perto essa obra. Foi um encantamento. São inúmeras conchinhas, pequenos caramujos, fragmentos de conchas e recortes de papel, colocados de uma maneira tal que resulta numa riqueza de construção, numa beleza incrível.

Qual a abordagem que quer dar ao primeiro Instituto Conversa em 2024, que estará sob a sua responsabilidade?
Fermiano – Pretendo falar sobre os desafios que enfrentei com algumas obras da coleção. Abordando os seguintes aspectos: limpeza da camada pictórica – a importância da avaliação do estado de conservação da camada pictórica na remoção de sujidades e vernizes; remoção de repinturas – os testes de solubilidade da camada de repintura e da camada original; consolidações de suporte – as técnicas e resultados possíveis com suportes muito danificados. Obras relacionadas: “O Sátiro na Casa do Camponês”; “Santa Justa e Rufina”; “Santíssima Trindade” e escultura de Elke Hering.

Quais as condições necessárias no relacionamento entre o cliente e o profissional da área? O que não pode faltar em favor de um trabalho bem-sucedido?
Fermiano – Acredito que seja o respeito mútuo. O profissional antes de tudo deve respeito ao bem cultural que está sob a sua responsabilidade e diante disso deve oferecer ao seu cliente as melhores opções de tratamento necessárias. Desde a mínima intervenção até a mais ampla, sempre cuidando para que a obra esteja garantida do ponto de vista da conservação futura. Por outro lado, a confiança que se estabelece entre cliente e profissional é muito importante para que o trabalho seja realizado com tranquilidade. Para ser bem-sucedido, é necessário que se adquira um conhecimento o mais amplo possível sobre o trabalho, o autor, as técnicas empregadas, as possíveis causas da deterioração, as intervenções recebidas no passado, enfim, tudo que for possível investigar, deve ser considerado importante. Tudo isso deve ser documentado por escrito e fotograficamente para que os conhecimentos adquiridos possam ser úteis em futuras intervenções de conservação-restauração.

Quais são os atributos necessários para a profissão? Quais as maiores dificuldades enfrentadas pelos profissionais de restauro e conservação?
Fermiano – Amar a profissão antes de tudo, pois isso vai gerar alegria em fazer um bom trabalho e satisfação durante o processo. A paciência e tranquilidade são importantes para executar todas as etapas necessárias para alcançar um bom resultado. Muitas vezes é preciso parar e esperar, desenvolver habilidades para realizar os procedimentos, como por exemplo, o processo de reintegração cromática, que depende além de conhecimento sobre a teoria das cores, de prática constante. Estudar e se atualizar sempre, como toda profissão exige. As maiores dificuldades dos profissionais da área estão nas oportunidades para formação. Temos cursos de nível superior bacharelado, na UFMG, em Belo Horizonte; na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no Rio de Janeiro; na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em Pelotas/RS; na Universidade Federal do Pará (UFPa), em Belém/PA. Curso superior de tecnologia no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (IFMG), em Ouro Preto/MG; no Centro Universitário Euro-Americano (Unieuro), em Brasília/DF; na Pontifícia Universidade Católica (PUC), em São Paulo/SP; na Faculdade de Tecnologia da Serra Gaúcha, em Caxias do Sul/RS. O exercício da profissão ainda está para ser regulamentado e o Projeto de Lei 1183/2019 está em tramitação na Câmara dos Deputados. Nós esperamos que com essa regulamentação o patrimônio cultural possa estar mais bem protegido da ação de aventureiros que colocam em risco os bens culturais, muitas vezes de maneira irreversível.

Um restaurador precisa ter conhecimento em ampla envergadura, noções de física, química, biologia, além de muita pesquisa sobre a história da arte e das civilizações. Você estuda muito?
Fermiano – Precisamos estar sempre atualizados sobre as novas pesquisas e estudos publicados, noções de física, química, biologia fazem parte dos conhecimentos necessários, bem como o estudo de história da arte. Devemos desenvolver parcerias sempre que necessário com os profissionais de áreas afins para solucionar dúvidas e encontrar soluções, trocar informações com outros profissionais da conservação-restauração para assegurar bons resultados no trabalho. Durante um processo de conservação-restauração é importante dispensar tempo para realizar pesquisa sobre determinados questões que se apresentam durante o trabalho.

 

Serviço
O quê: Instituto Conversa, palestra “O Acervo em Tratamento”, com Sára Fermiano
Quando: 12.3.2024, 17h às 18h30
Onde: Instituto Collaço Paulo – Centro de Arte e Educação, rua Des. Pedro Silva, 2.568, bairro Coqueiros, Florianópolis (SC)
Quanto: gratuito

O quê: exposição “Etérea”
Quando: Até 29.6.2024; seg. a sáb., 13h30 às 18h30
Onde: Instituto Collaço Paulo – Centro de Arte e Educação, rua Des. Pedro Silva, 2.568, bairro Coqueiros, Florianópolis (SC)
Quanto: gratuito

 

*Entrevista publicada em 8/3/2024, realizada por Néri Pedroso, jornalista, responsável pela produção de conteúdo e comunicação do Instituto Collaço Paulo.

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