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Paulo Gomes em visita ao Instituto

“Não pode haver pressa no

contato com obras de arte”

 

Paulo Gomes, professor doutor que vive em Porto Alegre (RS), aproveitou no último mês de março, dias agradáveis em Florianópolis (SC), onde veio a convite do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), numa iniciativa da linha de teoria e história das artes visuais. Na ocasião, no auditório do Centro de Artes (Ceart), o pesquisador deu uma aula-magna sobre “Paisagens de Pedro Weingartner em Três Tempos”, quando demonstrou sua especialidade no artista gaúcho que transitava no século passado por Santa Catarina, deixando em seu legado pinturas que retratam a antiga Desterro, hoje Florianópolis, e Nova Veneza.

Gomes atua na área de artes visuais, como artista, professor, curador independente e crítico, trabalhando com os temas: arte no Rio Grande do Sul, arte contemporânea brasileira, crítica de arte, desenho e acervos artísticos.  Erudito, com capacidade de síntese, clareza sobre as dinâmicas do circuito de arte contemporâneo, também colecionador de obras, sobretudo desenhos, ele aproveitou para fazer em Florianópolis outros encontros e diálogos.

O currículo indica um bacharel em artes plásticas na habilitação desenho, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS/1995), mestre (1998) e doutor (2003) em artes visuais – poéticas visuais pela mesma instituição e estágio doutoral na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (2002), estágio sênior no Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes (Cieba), da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (Fbaul) (2015/16). Fora do contexto acadêmico, representou o Rio Grande do Sul no Colegiado Setorial de Artes Visuais, da Fundação Nacional de Arte (Funarte), do Ministério da Cultura (Minc) (2009/11) e, no mesmo período, no Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC/Minc). “O sistema é uma engrenagem cheia de peças”, diz ele.

Membro de entidades como a Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (Anpap), entre outras, integrou diretorias, coordenou comissões e é autor de livros e artigos. Enfim, uma vastidão de atuações e estudos capazes de produzir boa conversa numa amplitude de temas relacionados ao universo das artes visuais. É um conhecedor de muitos meandros.

Em Florianópolis, conheceu o núcleo Pedro Weingartner (1853-1929) da Coleção Collaço Paulo, que se constitui de oito trabalhos, entre eles os emblemáticos “Os Revolucionários” e “Passarinheiros”, ambos realizados em 1893.

Nesta entrevista exclusiva à jornalista Néri Pedroso, Paulo Gomes fala da experiência de estar em Florianópolis diante de obras significativas do pintor ao qual vem dedicando boa parte de suas pesquisas. Ele aborda também algumas questões contemporâneas do circuito e do mercado de arte no Brasil, lamenta que “estamos ainda muito carentes de estudos” e o fato de que os “estudos nacionais apagam os valores regionais”. Por fim, ao analisar a era da comunicação com sua velocidade e urgências, diz que “não pode haver pressa no contato com obras de arte. Elas não foram feitas em 30 segundos! Elas exigem um tempo alargado de observação e consolidação de informações”.

 

Depois de estar relegada à invisibilidade, como é possível explicar no sistema de artes o crescente interesse pela produção pictórica brasileira do século 19? Esse processo é estimulado pelo mercado, pelos novos estudos ou há outros fatores?

Paulo Gomes – Explicar é difícil, mas é possível levantar algumas possibilidades: a impositiva historiografia da arte brasileira fundada na emergência das vanguardas – o modernismo, a Semana etc. – considerava o século 19 irrelevante e pouco significativo. Do ponto de vista dos estudos acadêmicos, temos que considerar os importantes estudos iniciados por Jorge Coli (Universidade de Campinas/Unicamp) e Sonia Gomes Pereira (Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ) nos pós-graduações e, depois, nas graduações (com a criação dos bacharelados em história da arte a partir do final dos anos 2000) e também seus textos publicados, que foram fundamentais para a revalorização do período.

O mercado entra nesse processo principalmente a partir de um estímulo externo. A criação do Musée d’Orsay, em 1986, recolocando em paridade as vanguardas – Courbet (1819-1877) e Manet (1832-1883) e o Realismo, os impressionistas – com os acadêmicos/pompiers, os simbolistas etc., abriram um enorme campo de interesse no sistema das artes e no mercado, visto que a invisibilidade desses setores, relegados às reservas técnicas e aos museus de província (Coli escreveu sobre isso), foram associados a uma carência de obras dos vanguardeiros disponíveis no mercado. Isso criou um nicho novo no mercado e, naturalmente, também nos estudos artísticos.

Fator importante foram as publicações e mostras de caráter retrospectivo, produzidas principalmente em São Paulo, além de catálogos de coleções, como, por exemplo: “Arte no Brasil”, de Pedro Caminada Manuel Gismondi, “História Geral da Arte no Brasil”, de Walter   Zanini, “Bienal Brasil Século 20”, de Nelson Aguillar (org.), “Arte do Século 19 – Mostra do Descobrimento”, de Luciano Migliaccio. “Arte no Brasil no Século 19”, de Alberto Martin Chillón e Roberto Conduru. Os catálogos de coleções, como a Coleção Ecilda e Sérgio Fadel, a Coleção Geyer – Museu Imperial, a Coleção Collaço Paulo (SC) etc.

Essas publicações, exposições e catálogos (aqui me detive naquelas que tratam especificamente do século 19, sem entrar no século 20, que tem outros magníficos exemplos, inclusive com as novíssimas publicações sobre o Art Déco no Brasil) trouxeram a público obras que, acompanhadas de estudos, abriram os olhos da comunidade para os valores e importância do período.

Como vês, são fatores externos inevitavelmente vinculados aos estudos. No Brasil, mesmo não havendo um impulso como o citado acima – criação de museus do século 19 – os estudos são a principal fonte de estímulo. A isso podemos associar a carência de obras de referência do modernismo, raras e indisponíveis no mercado, abrindo um interesse pelos mestres do século 19. Fraco, é verdade, mas existente a partir de então (isso demanda considerações mais aprofundadas, inviáveis nessa breve resposta).

Neste contexto, o que deve ser pesquisado, revisto ou esquecido na arte brasileira?

Gomes – Pesquisar tudo! Estamos ainda muito carentes de estudos, apesar da proliferação de publicações. A cada novo livro descobrimos coisas insuspeitadas. Minha opinião é a de que os estudos nacionais, de algum modo, apagam os valores regionais. Daí ser necessário que os estudiosos se voltem para suas regiões e escrevam suas histórias. As revisões, à luz dos valores regionais são fundamentais. Não esquecer nada, por mais irrelevante que possa parecer à primeira vista, pois o sistema é uma engrenagem cheia de peças e retirar qualquer uma delas, por mais desimportante que parece, é quebrar toda uma construção. Não devemos nunca esquecer que os artistas trabalham em comunidades, com vivências inevitáveis e, desse modo, tudo é relevante, não só nas artes plásticas, mas na literatura, no teatro, na música etc. Tudo está irremediavelmente interligado.

Qual a maior dificuldade de um pesquisador acadêmico no acesso de obras significativas da história da arte brasileira, muitas na mão de colecionadores?

Gomes – Ausência de publicações: catálogos gerais de coleções públicas e privadas; museus: nossos museus estão transformados em galerias estatais, onde as coleções permanentes dão lugar as mostras temporárias, inviabilizando ao acesso continuado às obras de referência (raras exceções são o Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), a Pina (em parte, pois as leituras curatoriais confundem mais do que facilitam a vida).

As coleções privadas são, raros casos, indisponíveis e desconhecidas. Falta estímulo a divulgação das obras, o que torna a vida do pesquisador bem difícil. Me lembro sempre de uma fala da Sonia Gomes Pereira, na qual ela dizia que no dia em que se abrissem as coleções privadas no Brasil teríamos que reescrever toda a história da arte do período…

Em sua recente aula-magna em Florianópolis, o senhor menciona e mostra o quanto é importante para quem pesquisa em artes visuais saber olhar e descrever as obras. Neste contexto, sobre a formação de jovens alunos, como vê o empobrecimento destas capacidades em face da era da comunicação, quando o celular se transforma num dispositivo corporal que reduz o potencial humano descritivo e coloquial.

Gomes – Não pode haver pressa no contato com obras de arte. Elas não foram feitas em 30 segundos! Elas exigem um tempo alargado de observação e consolidação de informações. Não cabe em um uatis ou numa postagem de instagram. Não se cria o mundo em sete dias (só “Ele” fez isso…). O celular é uma ferramenta fabulosa, pois permite captar imagens e textos com uma eficiência encantadora, mas é só isso, uma ferramenta. A diferença entre ver e olhar é o que deve ser enfatizado nos estudantes. Vemos tudo, olhamos pouco. Olhar implica esquadrinhar, analisar, comparar, daí a importância da descrição por escrito: ela obriga a lentidão e o minucioso. Trabalho árduo para professores com alunos apressados…

Para um leigo ou um artista contemporâneo com pouco conhecimento nos assuntos do passado das artes visuais, como é possível situar Weingartner no século 21?

Gomes – Um construtor de visualidades e de identidades. Um retratista/documentarista do seu tempo, com as ferramentas do seu tempo (as artes plásticas e sua fatura manual) e com uma missão importante: a de dar visibilidade a um Brasil ignorado pela Corte, que tinha um olhar restritivo sobre a imensidão do país. Ele fez isso, juntamente com outros, e isso assegura para ele, no século 21 e nos próximos, um lugar de honra na construção do país.

Weingartner era um artista viajante? Impressionante como movimentava-se, em viagens de estudos e moradias internacionais, também no próprio país, representa em suas pinturas Desterro e Nova Veneza, em Santa Catarina. O que diz sobre esse vai e vem do artista entre a Europa, o Rio de Janeiro, Porto Alegre, Desterro, Nova Veneza.

Gomes – Impressionante de verdade, mas coerente com sua missão e propósitos: viver na Europa era um modo de estar no centro do sistema das artes internacional, foi um fator de distinção, pois viver fora do Brasil dava-lhe um status diferenciado (é, praticamente, o único caso de artista brasileiro do período que viveu à margem das benesses oficiais do Império e da nova República). Suas idas e vindas eram determinadas pelo fluxo de produção (aqui ele tomava notas para as pinturas regionais), divulgação e comercialização de suas obras (se observamos as críticas da época vemos que ele vendia muito, e bem, em São Paulo, no Rio de Janeiro e, em menor grau no Rio Grande do Sul).

Momento importante dar uma aula-magna sobre um importante artista gaúcho, Pedro Weingartner que documentou paisagens de Santa Catarina. Qual o saldo que fica da visita em Florianópolis?

Gomes – Um saldo positivo, visto a grande quantidade de obras focadas em Santa Catarina. É necessário inventariar cuidadosamente essa produção regional, observar os aspectos tratados, tentar descobrir as motivações.

Como vê o papel das coleções? Qual sua impressão sobre as obras de Weingartner na Coleção Collaço Paulo?

Gomes – A Coleção Collaço Paulo é um encantamento, pela potência, pela importância e pelo fato de ser uma coleção privada e regional – coisa raríssima no Brasil – disponibilizada aos públicos. Espero que ela tenha, o mais rapidamente possível, uma sede que comporte as coleções de arte brasileira, Weingartner incluído, expostas em permanência.

A melhor das impressões sobre as obras do Weingartner na coleção que são, na sua maioria, excepcionais! Peças de grande importância, qualidade e relevância na obra do artista. Uma coleção que vale, pela abrangência de temas, por uma retrospectiva…

 

*Entrevista publicada em 26/4/2024, realizada por Néri Pedroso, jornalista, responsável pela produção de conteúdo e comunicação do Instituto Collaço Paulo.

 

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